ARTIGOS SOBRE MUSICOTERAPIA NA EDUCAÇÃO



A ESCUTA DIFERENCIADA DO MUSICOTERAPEUTA NO CONTEXTO ESCOLAR: DESVELANDO INTERSUBJETIVIDADES[1].

NASCIMENTO, Sandra Rocha do
Escola de Música e Artes Cênicas/UFG
EIXO TEMÁTICO: FENOMENOLOGIA E FORMAÇÃO HUMANA

RESUMO
O ato de ‘escutar’, em musicoterapia, configura-se muito mais que apreender, pela sensorialidade auditiva, as expressões sonoras e musicais manifestadas pelos indivíduos. Amplia-se para uma escuta sensível, que ouve discursos em suas múltiplas manifestações e significações. Através dos discursos descritivo, compreensivo e interpretativo da fenomenologia existencial merleau-pontyana, os fenômenos do ambiente escolar são compreendidos ou escutados diferentemente, como expressões de existências, conformando-se em espaços e tempos de desvelamento de conflitos intra e inter-relacionais e possibilidades de reflexão conjunta co-responsável entre pesquisadores e participantes.

Palavras-chave: Escuta diferenciada do musicoterapeuta; Intersubjetividade; Contexto escolar de tempo integral;

Introdução
Propomos, com este trabalho, refletir sobre as percepções apreendidas sobre e junto aos atores da comunidade escolar, evidenciando as expressões de intersubjetividade e de mútua influência entre os sujeitos e seu meio à manutenção de práticas pedagógicas tradicionais.
Durante o ano de 2009, com a realização da pesquisa de doutoramento em educação (PPGE/FE-UFG) dentro de uma escola de tempo integral, propondo a compreensão ampliada das dificuldades de aprendizagem através da mediação da musicoterapia, percebemo-nos subsidiados continuamente pela redução fenomenológica, levando à construção de uma escuta diferenciada do musicoterapeuta junto aos fenômenos do contexto escolar. Na etapa de recolha de dados foi-nos possível verificar que as ações à apreensão dos fenômenos se configuraram para além de meras técnicas metodológicas.
Compreendendo os diversos discursos expressos pelos sujeitos como fontes de informações sobre as dificuldades de aprendizagem, verificamos que a descrição fenomenológica conformou-se em espaços e tempos de desvelamento quer de conflitos intra e inter-relacionais quanto das subjetividades e formas perceptivas singulares de cada sujeito, em seus lócus de ação, dando-nos a conhecer as representações que tangenciavam a percepção docente[2] e o processo ensino-aprendizagem.
No entanto, o discurso descritivo fenomenológico, mesmo configurando-se como espaço-tempo de desvelamento das essências dos fenômenos, ainda ocasiona um debate entre duas circunstâncias polêmicas dentro da educação, qual seja: velar versus desvelar as incoerências e conflitos intra e inter-relacionais expressos no cotidiano escolar que influenciam no processo ensino-aprendizagem.
Desenvolvimento
Na construção do texto final da tese, intitulada A escuta diferenciada das dificuldades de aprendizagem: um pensarsentiragir integral mediado pela musicoterapia (NASCIMENTO, 2010), vivenciamos um debate entre essas duas circunstâncias: velar versus desvelar, desde os fatos apreendidos até as essências destes, compondo o discurso descritivo fenomenal. Sendo o objeto de estudo as manifestações das dificuldades de aprendizagem (DA) num contexto escolar de tempo integral (Eeti), elegemos o método fenomenológico existencial à recolha e descrição dos discursos expressos (considerando-os no lócus em que se encontram) e compreensão dos sentidos dados sobre e junto às DA. Objetivando proporcionar a expressão espontânea dos sujeitos participantes da pesquisa na Eeti, utilizamos de instrumentos de mediação sob múltiplas formas, traçando objetivos ora diferenciados ora complementares, tais como as entrevistas não-estruturadas, as conversações espontâneas, a observação não-participante e aberta entre outros. As diversas expressões foram registradas como se deram, sendo verificável a presença de elementos diferenciados nos diversos espaço-tempo da escola, valendo-nos da redução fenomenológica durante a realização de toda a pesquisa.
Segundo Rezende (1990, p.18), “a atitude descritiva e o discurso a ela correspondente decorrem da “volta às próprias coisas” para redescobri-las num encontro original, anterior a todas as informações fornecidas pelas fontes secundárias e que, por isso mesmo, devem ser postas entre parênteses”. O autor ainda sustenta que “a intuição das essências, visada pela fenomenologia, não diz respeito a um mero conteúdo conceitual que possa ser definido, mas à significação de uma essência existencial, que como tal deve ser descrita”(op.cit, p.17). Faz-se necessário “redescobrí-las num encontro original, anterior a todas as informações fornecidas pelas fontes secundárias e que, por isso mesmo, devem ser postas entre parênteses” (REZENDE, 1990, p.18). O autor ainda afirma que o discurso fenomenológico ou descrição fenomenal deve compreender três dimensões: a atitude descritiva, a busca de compreensão e a interpretação, efetivando constantemente a redução fenomenológica considerada como impossível de ser alcançada enquanto fim.
Referindo-nos à escuta diferenciada do musicoterapeuta, o ato de ‘escutar’ configura-se muito mais que apreender, pela sensorialidade auditiva, as expressões sonoras e musicais manifestadas pelos indivíduos. Como uma das premissas fundamentais na atuação do musicoterapeuta, a atitude de escuta constitui a ferramenta essencial em sua práxis. Mas não uma escuta centrada na compreensão restrita do termo escuta (entendido como “ato de escutar ou pessoa que escuta”), mas uma atitude de à escuta, ou seja, “em estado, postura ou atitude de atenção”, ou, ainda um escutar, tornar-se ou estar atento para ouvir” (FERREIRA, 1988, p.265) (grifo nosso), compondo uma escuta sensível (BARBIER, 2002).
Barbier (2002) afirma que a escuta sensível está sustentada em alguns pontos, quais sejam:
A escuta sensível apoia-se na empatia. O pesquisador deve saber sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro para “compreender do interior” as atitudes e os comportamentos, o sistema de idéias, de valores, de símbolos e de mitos (ou a “existencialidade  interna”,  na minha linguagem). A escuta sensível reconhece a aceitação incondicional do outro. Ela não julga, não mede, não compara. Ela compreende sem, entretanto, aderir às opiniões ou se identificar com o outro, com o que é enunciado ou praticado. /.../ (op.cit, p.94) (grifo nosso).

Na prática musicoterapêutica, a escuta diferenciada do musicoterapeuta deve se dirigir à construção desta escuta sensível, definindo-a como “um escutar/ver (BARBIER, 2002), colocando todos os seus sentidos à compreensão das expressões dos sujeitos.
Centrando, durante a pesquisa, na apreensão sobre as manifestações do não-aprender na Eeti, a ação inicial do musicoterapeuta-pesquisador definiu-se como escutar diferentemente essas diversas expressões observando como aquelas se dão na realidade em que estão inseridas. Compreendemos, assim, que essa escuta diferenciada configurou-se na capacidade de escutar subjetividades expressas através dos discursos dos sujeitos em suas diversas manifestações, quer presentes na comunicação verbal e não-verbal (falas, silêncios, movimentações, ações, reações, etc), nos objetos culturais que compõem (ou não) seus lócus de atuação, quanto nas expressões sonoro-musicais manifestadas durante as experiências musicais proporcionadas pelo musicoterapeuta. A escuta diferenciada do musicoterapeuta define-se, assim, como a capacidade de escutar subjetividades expressas nas relações intersubjetivas homem-mundo sob suas diversas manifestações, desvelando suas essências (NASCIMENTO, 2010).
Durante a pesquisa, os discursos descritivo, compreensivo e interpretativo da fenomenologia existencial merleau-pontyana apresentaram-se como espaços e tempos de desvelamento de subjetividades e intersubjetividades, mostrando especificidades a cada visada sobre os fenômenos. Exemplificamos com alguns fenômenos que recorrentemente encontramos no contexto escolar: a lógica da culpabilização do outro e a lógica ameaça-delação-punição, verificados como obstáculos ao ensino e a aprendizagem.
No discurso descritivo fenomenológico, através da observação não-participante e aberta, encontramos falas como: “os professores não colaboram, não cuidam das crianças”; “tem uns alunos que até choram e falam “foi o professor que não deixou eu assistir aula‟(sic coordenação pedagógica); ou nas ações dos gestores tais como a culpabilização direcionada às instâncias públicas com as implantações de projetos educacionais sem um planejamento participativo das escolas (incorrendo em inadequações estruturais de diversas ordens), ou ainda a queixa sobre a ocorrência de “proposições” diretivas feitas pela Equipe Multiprofissional (SEDUC/GO) para a escola executar (culpabilizando os educadores por toda e qualquer dificuldade do alunado). Junto aos docentes, encontramos a incidência de dificuldades relacionais entre professores e alunos, recaindo as explicativas (culpa pelos conflitos ) sobre esses. Também encontramos ações como a tendência a culpabilização dos pais pelo não acompanhamento de seus filhos. Os alunos, no entanto, reagiam se queixando dos maus tratos dos professores para com eles, culpando-os pelas suas condutas. Em nossas observações verificamos que essas últimas se faziam coerentes, visto que a encontramos presentes na escola constantemente. Agregando a esses discursos outro elemento, verificamos que a prioridade na escola ainda está centrada na aquisição das competências de leitura e escrita, recaindo excessivamente em ações como cópia (de textos, ações, respostas, condutas etc).
Através do discurso compreensivo fenomenológico, as ações de cópia desvelaram uma característica sui generis presente, ainda, nos espaços-tempos de aprendizagem (tanto na sala de aula quanto nas oficinas e demais espaços-tempos da escola): a homogeinidade imputada aos sujeitos quer no aprender quanto nas relações educativas. Agregando outro matiz a essa característica, verificamos que as inter-relações conflituosas e sem resolutividade entre alunos e professores tendiam à resolutividade através de um padrão sempre repetido: sermão seguido de briga, ameaças, castigo e ao final com delações aos familiares, sempre realizado pelos adultos e copiado pelos alunos. Ou seja, conformavam a existência da lógica ameaça-delação-punição e a manutenção da postura tradicional de ensino.
A paisagem sócio-relacional[3] era impregnada de discursos que enfatizavam a culpabilização de outrem, quer de e entre os professores e os alunos (permeadas com ameaças e castigos), ou entre aqueles e os familiares (com queixas e cobranças), ou ainda entre gestores e professores (com queixas e solicitações), bem como entre os alunos (com delações e discriminação). Junto aos alunos verificávamos constantemente a presença da lógica da culpabilização, reproduzindo as aprendizagens apreendidas.
Através do discurso interpretativo fenomenológico[4] compreendemos esses fenômenos a partir de um outro olhar, um olhar diferenciado, fazendo ressoar a lógica da (in)existência[5] das dificuldades ou das diferenças. Nas diversas condutas observadas, impregnadas de representações, foi possível percebermos o quanto os fatos se tornavam existentes ou (in)existentes conforme o momento que o indivíduo estava vivenciando. Os elementos ou fatos  -presentes ou ausentes-  não eram neutros ou sem significação, mas desvelavam existências e/ou (in)existências, isto é, apresentavam-se como fatos considerados pelos sujeitos, imprimindo-lhes importância e/ou fatos que (mesmo sendo conhecidos pelos sujeitos) não eram considerados em suas ações, tornando-se (in)existentes. Ampliando em profundidade nossa compreensão sobre as DA, consideramos que outras lógicas sustentam esses movimentos.
Bossa (2002) afirma que a escola almeja e busca por um aluno ideal, baseado num “olhar normalizante”, apontando a família como depositária de toda a causalidade dos problemas de aprendizagem e do fracasso escolar por não assumir sua função educativa. No entanto, a escola, sustentada nessa concepção de indivíduo normal e racional, proporciona a segregação das crianças que não se encaixam e justificam suas não-ações através da culpa ao outro. Incidem, com essa postura, em situações caracteristicamente discriminatórias.
Encontramos não apenas a lógica do aluno ideal, mas a manutenção de práticas tradicionais de ensino. Observamos que muitas práticas pedagógicas e discursos levavam à permanência da “educação bancária” (FREIRE,1970), sustentada numa relação opressora permeada por violências reais. Constituída por uma consciência possessiva, que prioriza e realiza o controle, ocasionando a dependência emocional dos alunos e maquiando-se numa “falsa generosidade” (ibid.) principalmente junto aos familiares, essa educação bancária é mantida pelas reações dos alunos bem como por todos os atores da comunidade escolar quando não assumem suas parcelas de responsabilidade na continuidade das circunstâncias. Caracteristicamente, a “educação bancária” desvela uma personalidade docente que “sofre da falta da dúvida(...) fechando-se em sua verdade” (FREIRE, 1970, p.24).
Ampliando nossa escuta, apoiamos em Ribeiro (1994), sustentado na Teoria do Campo e na Gestalt, ao afirmar que “a realidade se manifesta a nós de vários modos ou que nós a descobrimos de vários modos”(p.63) (grifo nosso), em que compreendemos que no contexto escolar não é possível separar os diversos sujeitos, suas expressões e seus lócus de ação. Para Ribeiro (ibid.), existem três campos a partir dos quais devemos ver a realidade, com aspectos que constantemente se interinfluenciam, proporcionando a modificação da realidade (ou campo total) e configurando o que o autor denomina como “zona de contaminação”: o campo geográfico, constituído dos objetos físicos, reais ou da realidade em si, sem significações a priori; o campo psicológico, “aquele que recebe uma significação a partir das emoções que o afetam” (p.63), produzindo ou possibilitando a experienciação de estados afetivos; o campo comportamental, decorrente dos anteriores, ou seja, como reagimos àqueles.
As atividades pedagógicas observadas apresentavam-se, assim, com um campo geográfico (espaço-tempo) sempre igual, um campo psicológico baseado na lógica ameaça-delação-punição e um campo comportamental rígido, configurando espaços e tempos de aprendizagens sem flexibilidade quanto às ações e reações dos atores da escola. Imprimiam em seus sujeitos a aprendizagem da associação culpa-punição em detrimento à noção de co-responsabilidade, tão necessária à educação no novo paradigma contemporâneo (MORIN, 2008) e muitas vezes entendida como delação-culpabilização.
Apresentando o conceito intersubjetividade como o encontro de duas subjetividades que se influenciam reciprocamente, Merleau-Ponty (1999, p.18) afirma que,
o mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de uma nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha.

Sustentando-se no autor, Copalbo (2008, p.156) afirma que “Merleau-Ponty nos ensina que a pluralidade dos sujeitos é intersubjetividade, porque ela repousa sobre a coexistência, a presença com, o pertencimento de um mundo comum”, não devendo ser compreendida como “reciprocidade das consciências”. Sendo assim, o outro e nós mesmos não somos separados e dicotômicos, mas sim “o sujeito que eu sou e o outro são dois momentos de um só fenômeno” (ibid.), fazendo-se necessária, constantemente, a observação da própria subjetividade. A partir dessa consideração, Copalbo (2008, p.160) afirma que “o sujeito nasce na e pela instituição e é por ela que ele se reconhecerá a si mesmo graças a mediação do outro, dos laços da intersubjetividade”.
Alargando nossa compreensão sobre as dificuldades de aprendizagem na Eeti a partir da noção de intersubjetividade, afirmamos que não são apenas os fatos subjetivos que influenciam em cada sujeito e suas interações, mas os fatos sociais manifestos nos objetos construídos ou não, nas ações realizadas ou não, carregados de representações e aspectos ideológicos, tangenciados pelas histórias de vida de cada sujeito, inter-influenciando mutuamente tanto os atores da comunidade escolar quanto os contextos ou lócus em que atuam.
Dentro do contexto escolar, as ações de coleta de dados sobre o cotidiano escolar foram percebidas, pelos atores deste ambiente, sob diversas compreensões e adquirindo múltiplas conotações: curiosidade, interesse, desconfiança, dúvida, ameaça, delação, avaliação externa, medo etc. Em diversos momentos, nossos olhares (de pesquisadores) encontravam os olhares aflitos dos gestores e coordenadores quando da manifestação explícita dos conflitos, principalmente entre os docentes, escutando daqueles “agora você já sabe todos os problemas da escola...viu tudo”. No entanto, a atitude de escutar os diversos atores em suas ações cotidianas desvelou outros elementos.
Na manutenção das lógicas ameaça-delação-punição e culpabilização, encontramos o cerne das ações que levam à configuração da educação bancária ou da educação transformadora: a anti-diálogo versus o diálogo, o velar versus o desvelar. Nas inter-relações sustentadas na atitude autoritária (perspectiva educativa da educação bancária) não será permitido a existência do diálogo, em que a relação professor-aluno ancora-se na exclusão do diferente, na perda da humildade do docente reforçada pelo sentimento de auto-suficiência, com ações cotidianas de culpabilização do outro, reafirmações de hierarquias carregadas de uma relação vertical, bem como de um “pensar ingênuo” acomodado às normalizações. Gera somente um tipo situação entre os sujeitos da escola: a “antidialogicidade da concepção “bancária” da educação” (FREIRE, 1970, p.96). Em oposição a essa perspectiva bancária da educação, Freire (1970) aponta para a “educação autêntica” sustentada num diálogo verdadeiro, numa relação horizontal, onde não há aquele que sabe mais e aquele que sabe menos, na humildade e confiança, no amor e na fé nos homens como autores de suas ações, e por um pensar verdadeiro e crítico que prioriza pela reflexão. O “educador-educando dialógico”(FREIRE, 1970) favorecerá espaços de confiança para um verdadeiro diálogo.
Embora os diversos discursos manifestados e presentes no contexto escolar não fossem compreendidos como denúncia negativa ou delação sustentada na culpabilização de outrem, lógica que a educação bancária imprime, esses (os discursos) eram auto-silenciados, em que apreendemos mais um medo à exposição do não-saber (o medo de errar e consequentement, ser punido), priorizando o silêncio e o velar das expressões. Re-produziam as aprendizagens ensinadas e incorporadas por todos da comunidade escolar.
Compreendendo que no contexto escolar todos se inter-influenciam mutuamente, faz-se premente a co-construção de espaços-tempos para a reflexão entre e junto-com os atores do contexto escolar. Propondo a inserção do musicoterapeuta no espaço escolar, almejamos alcançar a compreensão posta por Patto(1973) ao referir-se a um “interlocutor qualificado”, sustentando que “este profissional deve estar capacitado para uma escuta que, criticamente informada, leve em conta as fantasias, angústias e defesas que acompanham qualquer processo de mudança” (op.cit., p.352). Com a mediação da música numa perspectiva musicoterapêutica dentro do espaço escolar, verificamos que resgatamos a função da música contribuindo com a formação humana de forma integral. Proporcionamos, através das experiências musicais musicoterapêuticas, um abrir a escuta ao mundo intra e interpessoal, favorecendo o vivenciar de novos textos existenciais. Acresceríamos, com a efetivação de uma escuta diferenciada sobre os fenômenos, a necessidade de uma escuta sensível que possibilite aos seus interlocutores  –todos os sujeitos da comunidade escolar-  a aquisição dessa mesma escuta sensível.
Avançando à compreensão de atuações ou propostas destinadas à escola pública, Patto (2005) afirma, com veemência, qual atitude se faz preeminente alcançar:
penso que a única atitude coerente a tomar é repensar, com honestidade de propósitos e com a participação de todos os integrantes da vida escolar (pais, alunos, funcionários, administradores e professores), a política educacional, para que se possa identificar corretamente o inimigo e romper o círculo vicioso de acusações mútuas (p.36-7).

Apresentando a Musicoterapia no contexto escolar de tempo integral, vislumbramos a efetivação de um dos possíveis espaços e tempos que possibilite novas experiências entre os atores da comunidade escolar. Sustentados em nossa escuta musicoterapêutica, corroboramos com o Freire (1970) ao afirmar que
a existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir dêles um novo pronunciar (p.92).

Ressaltamos que a formação humana possui, como condição sine qua non, o permanente olhar indagador, que vislumbramos como o “retorno à fé perceptiva” (MERLEAU-PONTY, 1999). Faz-se premente alcançar o re-visitar constante não somente de conceitos, mas também de lembranças, ações, reações, emoções, numa ação de escutar-ver novamente o conhecido  buscando-lhes outros sentidos e muito mais sentidos e “perceber que há sempre mais sentidos além de tudo aquilo que podemos dizer”, como enfatiza Rezende (1990, p.17).

Conclusão
Com o estudo que realizamos, a compreensão ampliada das DA mediada pela musicoterapia possibilitou trazer para a Educação a contribuição dessa escuta diferenciada sobre os fenômenos, tão presente na musicoterapia, com sua gênese na percepção e na presença das expressões dos sujeitos como desveladoras de essências capazes de movimentar-ações-de-existências.
Através dos discursos descritivo, compreensivo e interpretativo da fenomenologia existencial merleau-pontyana, os fenômenos expressos no contexto escolar desvelam subjetividades e intersubjetividades. Sustentada na redução fenomenológica, a escuta diferenciada do musicoterapeuta estará permanentemente em epoché, na qual a suspensão de seus conceitos visa a apreensão das significações dadas pelos sujeitos buscando descrever os fenômenos como se apresentam, considerando não somente as expressões subjetivas, mas, também, a inserção dos sujeitos no mundo e a influência deste nos mesmos, conformando a intersubjetividade ou a constituição mútua homem-mundo (MERLEAU-PONTY, 1999).
Ressaltamos que as problemáticas educacionais que influenciam no processo ensino-aprendizagem devam sem questionadas continuamente, permitindo espaços-tempos significativos às suas compreensões ampliadas, fazendo desvelar as intersubjetividades, através de um diálogo genuíno,  saindo das lógicas incorporadas acriticamente e possibilitando alcançar a perspectiva pela qual obterão sua resolutividade. Escutando diferentemente, os discursos dados a conhecer durante as ações musicoterapêuticas no contexto escolar de tempo integral foram (como o devem ser) compreendidos como expressões de existências. Configuraram-se como espaços e tempos de reflexão conjunta co-responsável entre pesquisadores e participantes, tanto junto as ações que movimentaram a escola para a mudança, como também em suas (in)ações, que estiveram presentes desde o início da pesquisa, possibilitando indagações e posteriores reflexões.
Colocando-nos em suspensão constante,  nos é possibilitado o momento de re-visitar nossas aprendizagens intra e inter-relacionais através de experiências significativas, proporcionando uma re-leitura sobre os fenômenos e sendo levados, inevitavelmente, à expressão diferenciada em cada espaço e tempo de nossas existências, incorporando possibilidades de re-aprender a ver o mundo e ampliar nossa formação humana.
Referências Bibliográficas
BARBIER, René. A pesquisa-ação. Brasília: Plano Editora, 2002. (Série Pesquisa em Educação, v.3).
BOSSA, Nadia. Fracasso escolar: um olhar psicopedagógico. São Paulo: Artemed, 2002.
COPALBO, Creusa. Ação e situação em Merleau-Ponty: o sentido intersubjetivo da historicidade. In:VALVERDE, Monclar (org.). Merleau-Ponty em Salvador. Salvador: Arcádia, 2008.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Escolar da Língua Portuguesa. 1ª ed. (2ª impressão), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília: Líber Livro Editora, 2005. (Série Pesquisa em educação; 10)
GONZÁLEZ REY, Fernando. Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Pioneira Thomson Lerning, 2005.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 15ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
NASCIMENTO, Sandra Rocha do. A escuta diferenciada das dificuldades de aprendizagem: [manuscrito]: um pensarsentiragir integral mediado pela musicoterapia. / Sandra Rocha do Nascimento. Doutorado (Tese). Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educação/Universidade Federal de Goiás: Goiânia, 2010.
PATTO, Maria Helena de Souza. A produção do fracasso escolar- história de submissão e rebeldia. São Paulo: T.A. Queiroz, 3ª reimpressão, 1993. (Biblioteca de psicologia e psicanálise, v.6).
__________________________.Exercícios de indignação: escritos de educação e psicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
RIBEIRO, Jorge Ponciano. Gestalt-terapia: o processo grupal: uma bordagem fenomenológica da teoria do campo e holística. São Paulo: Summus, 1994.
REZENDE, Antonio Muniz de. Concepção fenomenológica da educação. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1990. (Coleção polêmicas do nosso tempo; v.38)


[1] Alguns trechos foram extraídos da tese de Doutorado em Educação (PPGE-FE/UFG, 2010), intitulada A escuta diferenciada das dificuldades de aprendizagem: um pensarsentiragir integral mediado pela musicoterapia (NASCIMENTO, 2010).
[2] Configuramos o termo percepção docente para especificar as representações, compreensões ou modos de pensar evidenciadas pelos professores acerca dos fenômenos educacionais, entre eles os seus alunos, podendo se encontrar configurada numa atitude natural ou numa atitude fenomenológica.
[3] Apresentamos, na tese, os diversos fenômenos que configuram o ambiente escolar de tempo integral através de uma forma diferenciada: descrevendo paisagens. A paisagem visual, referente a constituição estrutural do contexto escolar, desde os recursos até a sua aparência física; a paisagem sonora, referente a ambiência sonora, seja composta por falas, músicas, sons ou ruídos, bem como de especificidades presentes nas expressões verbais, tais como as entonações verbais, termos etc; e a paisagem sócio-relacional, referente as inter-relações presentes na escola, configurando a ambiência relacional.
[4] O método analítico fundado por Merleau-Ponty (1999), a hiperdialética ou dialética sem síntese, propondo um movimento sempre constante com abertura permanente às mudanças do mundo sem tornar-se preso a sínteses definitivas, sustentou a discussão teórica ou a dimensão interpretativa do discurso fenomenológico em nossa tese, conformado no diálogo entre diversos autores que buscam compreender os fatores que influenciam na aprendizagem levando aos casos de DA. Nesse diálogo entre as áreas da Educação, Psicologia e Musicoterapia, os conceitos estruturantes estrutura fenomenal dialética e intersubjetividade (MERLEAU-PONTY,1975;1999) subsidiaram a aproximação entre os diferentes olhares, objetivando compreender nosso objeto de estudo em sua dimensão mais global possível, apontando para a compreensão da integração do homem e do mundo em sua mútua constituição.
[5] O sentido que pretendemos com os termos assim compostos, refere-se ao movimento de considerar o aspecto citado mas se posicionando contrariamente quando da realização de ações, tendendo à negação do fato e similar compreensão. Ao termo referido (in)existência diz sobre a consideração, como existente, de algum fenômeno (por exemplo, os docentes afirmando sobre a multifatorialidade e as diversas manifestações das DA), geralmente sendo apontado por posições contrárias (nas falas as DA se referem aos problemas de comportamento) gerando ações que imputam uma negação da existência do mesmo (nas ações, nem os multifatores nem as diversas formas de manifestação são consideradas).

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