sexta-feira, 28 de outubro de 2016

A escuta diferenciada das dificuldades de aprendizagem: um pensarsentiragir integral mediado pela musicoterapia.




Nascimento, Sandra Rocha do.
A
escuta diferenciada das dificuldades de aprendizagem:
[manuscrito]: um pensarsentiragir integral mediado pela musicoterapia. / Sandra Rocha do Nascimento. - 2010. 

Tese (Doutorado) Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Educação, 2010.

Trecho da Tese  CONSIDERAÇÕES EM CONTINUUM
 (p.326- 334)

Não existiria som, se não houvesse o silêncio Não haveria luz se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim: dia e noite, não e sim Cada voz que canta o amor,

não diz tudo o que quer dizer
Tudo o que cala fala mais alto ao coração (...) Nós somos medo e desejo,
somos feitos de silêncio e som
Tem certas coisas que não sei dizer

Vou te contar, os olhos já não podem ver Coisas que só o coração pode entender (...) fundamental é mesmo o amor
é impossível ser feliz sozinho 

 


Uma indagação, como tantas outras, faz-se presente nesse momento, embora se configure como uma das questões originárias do estudo: O QUE É DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM ? 
Respondê-la ou vislumbrar sua direção à resposta, nos fala muito mais do que apontar uma verdade ou afirmativa conclusiva. 
Diz sobre como compreendemos, agora, sobre as dificuldades de aprendizagem, conscientes de estarmos num movimento de constante suspensão e mutuamente constituídos pelo olhar do outro e o mundo que nos cerca e nossas ações.
Uma música se faz presente, nesse momento, embora sempre esteve em ressonância com o modo pelo qual conpreendemos as coisas do mundo. Trazê-la para esse momento, importa mais o sentido de constante continuidade do que de fechamento. Iniciar com a música proporciona, também, abrir à escuta sobre outra possibilidade de ou melhor, realizando uma leitura diferenciada em que se faz necessário mudar a maneira de apreendê-las e percebê-las.




Não existiria som, se não houvesse o silêncio
    não existe o momento de SABER, se não existir o momento de NÃO-SABER
Não haveria luz se não, fosse a escuridão
    não haveria o SABER, o conhecimento, se não fosse a INDAGAÇÃO, a dúvida
A vida é mesmo assim: dia e noite, não e sim
    Aprender é assim, ora com certezas, ora com dúvidas, (in)certezas, ora dificuldade  de   aprendizagem, ora aprendizagem "eu não sei" e "eu sei" de mãos levantadas
Cada voz que canta o amor, não diz tudo o que quer dizer
    Cada professor que fala do mundo, das coisas que o Homem construiu não diz tudo o que existe, o que sabe ou pode ensinar
Tudo o que cala fala mais alto ao coração
    toda a dúvida que cala fala mais do que o não-saber fala de como cada um consegue, agora, ler e escrever no mundo
Silenciosamente, eu te falo com paixão 

    Silencioso ou não, com muitas dúvidas, o aluno com dificuldades de aprendizagem expressa de várias formas, com todo o seu Ser
Eu te amo calado, como quem ouve uma sinfonia
de silêncios e de luz
    o aluno com dificuldade de aprendizagem ouve calado considera o adulto ouvindo-o em seus saberes
    adultos, pais, professores, também cheios de dúvidas e de conhecimentos
Nós somos medo e desejo,
somos feitos de silêncio e som
    Nós e nossos alunos vivemos entre o medo de não saber e o desejo de saber
    somos constituídos de momentos de refletir sobre o que não sabemos e momentos de  mostrar o que sabemos
Tem certas coisas que não sei dizer
    mas as coisas que não vivi, ainda, não sei dizer
Vou te contar, os olhos já não podem ver
    o que quero dizer é que só com a razão já não podemos
Coisas que só o coração pode entender
    a constituição do Homem-Mundo agora se lê através da emoção, do EMOCIONAR-SE entrando em contato com o OUTRO
Fundamental é mesmo o amor
    pois fundamental é a ação de ensinar-aprender, uma relação dialógica é impossível ensinar-aprender sozinho É impossível ser feliz sozinho
O resto é o mar, é tudo o que não sei contar
    o resto é a imensidão do Mundo e do Homem tudo o que eu "ainda" não sei falar
São coisas lindas que eu tenho pra te dar
    são coisas lindas que falamos do "nosso olhar" 

    sobre o mundo que nós temos, ambos, pra ensinar-aprender
O amor se deixa surpreender
    e a aprendizagem , assim , se faz, se deixa acontecer
enquanto a noite vem nos envolver
    até outra indagação ou dúvida vir nos envolver
fundamental é mesmo o amor
    fundamental é a relação de diálogo com o outro
é impossível ser feliz sozinho
    porque é impossível aprender, amar, cantar, ser feliz sozinho

Ecoando em nós, música e poema, tornam-se um texto único que imprime uma leitura diferenciada sobre as dificuldades de aprendizagem. Solicita-nos a apreensão de outras formas de ouvir, pensar e agir sobre todos os multifarores interinfluentes que conformam as DA. Exige-nos aprendermos outros "textos psíquicos", como apontara  Ruud (1990). 


No entanto, para alcançarmos uma compreensão ampliada sobre as DA, uma ação se faz necessária: conhecer por dentro o contexto onde se manifestam e os discursos que dizem sobre. Porém, não somente conhecendo-o a partir das formas dadas, já categorizadas através de documentos ou discursos (ação muitas vezes realizada), mas através de uma atitude observadora, de apreensão pela própria percepção (ação geralmente desconsiderada). No entanto, é preciso nos permitirmos estar, com-viver, com-partilhar espaços e tempos com os sujeitos que cotidianamente constroem e são construídos.
Outro aspecto importante aponta para um movimento de compreensão multidirecionada sobre as DA e os multifatores interinfluentes, considerando cada expressão manifestada pelos sujeitos da escola, como fontes de informações que falam sobre os alunos e suas circunstancialidades. A leitura diferenciada demanda vêr as DA expressas em todos os discursos e sob variadas formas e locus de existência, nas ações e reações de cada sujeito, nas falas e silêncios quer dos alunos, dos professores, dos pais, nas formas e recursos presentes ou ausentes no meio que circunda cada ator da escola de tempo integral. 


Na diversidade de fatos e ações do contexto escolar consideramos a existência de um movimento de ligação entre todos os discursos: as condutas de aprendizagem dos alunos. Estavam presentes em todos os espaços e tempos de aprender, levando para cada um o que os demais lhes ensinavam. Se compreendermos que o aluno, com suas ações e reações faz essas ligações no que ainda está disjunto, na educação, poderemos compreender que esse universo complexo da realidade escolar é um só, em total interligação entre sujeitos e mundo.
Voltando nossa atenção para as figuras que abrem esse capítulo, percebemos que as mesmas bolas coloridas impressas nas paredes pelos adultos são encontradas nas ações das crianças ao pintarem os tocos de madeira. Pura coincidência? Não cremos. Compreendemos como movimentos ressonantes que evidenciam o quanto as ações dos professores influenciam nas ações dos alunos, bem como as ações e reações desses influenciam naqueles. Uma mútua interinfluência de existências.
Sustentamos, assim, a importância da coleta de informações diversificadas sobre os alunos com DA, integrando a lógica da multifatorialidade interinfluente na aprendizagem. Consideramos que a integralidade dos dados possibilita uma compreensão ampliada das dificuldades de aprendizagem, favorecendo intervenções mais acertivas e minimizando a cristalização de quadros mais graves advindos dos numerosos insucessos escolares. 


A ampliação da compreensão e ação frente as DA, requer um olhar que veja as manifestações das dificuldades de aprendizagem e da aprendizagem como duas dimensões não-dicotômicas, ambas elementos constitutivos do processo ensino- aprendizagem, pois não é possível separarmos o momento de aprender do momento da dúvida, o momento de um não-aprender.
No entanto, nem sempre os alunos (ou aquele que se percebe aprendiz) possui espaço e tempo para mostrar seu saber ou seu não-saber. O medo de mostrar e o desejo de fazê-lo, movimentos presentes nos ambientes educativos, ainda se encontram sustentados numa lógica, incorporada sem reflexão, na qual quem sabe fala, explana, explica, diz sobre o mundo, em oposição a quem não sabe, que se cala, só escuta e aceita sem questionamento. Essa lógica suprime momentos riquíssimos entre quem-sabe e quem-não-sabe, mantendo a segregação daquele que tem dúvida, que ainda não sabe, que se torna silenciado e permanece silenciando todas as suas expressões, fazendo-se existir pelo não-saber, pelas dificuldades de aprendizagem. 


É no diálogo, na relação dialógica, que se ensina e se aprende em mútua influência. Não há, desta forma, certezas fechadas, finitas, bem como sujeitos sabedores de toda verdade e de todo conhecer. Encontramos, sim, a certeza de que o que sabemos é um pouco da imensidão que nos cerca, fazendo-nos, também, enquanto adultos, não- sabedores e em dúvida em vários momentos de nossa existência. Mas necessitamos ter coragem de assumir esses momentos, pois a lógica anterior impede que mostremo-nos em dúvida, impede-nos de existir enquanto aprendiz, fechando-nos em saberes enraizados em nossas histórias de vida e nas vozes dos outros-que-sabem-mais. 


A dificuldade de APRENDIZAGEM 
É UMA disSONÂNCIA ENTRE 
PENSARSENTIRAGIR. 


Compreendemos como a dificuldade de aprendizagem e a aprendizagem,  ambas em mútua constituição, são ora dissonância ora sonância, ora não estar em sintonia com o que nos solicita o mundo ora tirar (fazer soar) de nós tudo o que sabemos, num movimento constante de ressoar a partir do mesmo locus em que se conformam: o sentir mediando o pensar e o agir sobre o mundo. /.../


Nas palavras de Paulo Freire (1970), esse momento de ensinar torna-se um momento de aprender, "o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado"(p.78).
Sustentamos que as DA devam sem questionadas, possibilitando espaço-tempo significativo à sua compreensão ampliada, saindo das lógicas incorporadas acriticamente e possibilitando fazer desvelar através das DA à perspectiva pela qual alcançarão sua resolutividade.
As dificuldades de aprendizagem seriam, assim, percebidas para além da manifestação, pelo aluno, do não-aprender competências curriculares ou  comportamentos, manifestando-se através de ações expressivas impregnadas de mensagens referentes ao seu não-aprender. Para compreendê-las importaria mais nos perguntarmos, constantemente, quais elementos auto-expressivos os alunos utilizam para falarem de seus déficits, e muito menos rotulá-los pela não inserção na normatização social.
Com o estudo que realizamos, a aprendizagem que obtivemos à compreensão ampliada das DA possibilita trazer para a Educação a contribuição dessa escuta diferenciada sobre os fenômenos, tão presente na musicoterapia, com sua gênese na percepção e na presença da expressões criativas como desveladoras de essências e capazes de 
movimentar-ações-de-existências.